Hoje vou pegar no pé dos gurus de recursos humanos (RH). Até pouco tempo atrás, os trabalhadores do setor privado eram classificados como “empregados” e os do setor público como “funcionários”. De repente, os gurus de RH começaram a dizer que era feio chamar alguém de “empregado” e deveríamos passar a chamá-los de “funcionários”. Depois de um tempo, resolveram dizer que “funcionário” também não fica bem e, portando, deveríamos chamá-los de “colaboradores”. Essa é a primeira milonga, conforme justifico mais adiante.
A segunda milonga, muito em voga nos dias atuais, é essa história de dizer que a empresa é uma “família”. Um dia eu ia de avião para São Paulo e um anúncio da empresa dizia: “aqui, somos uma grande família”. A moça que viajava do meu lado elogiou a peça publicitária e me perguntou o que eu achava. Respondi-lhe que aquilo era, para mim, uma grande hipocrisia e uma mentira. Ela ficou assustada, e tive de explicar meu ponto de vista. A família é uma instituição regida por dois deveres: proteção e solidariedade. Já a empresa é uma instituição regida por duas necessidades: profissionalismo e eficiência. Quando vem uma crise, a família não demite o filho; ela divide o bife. A empresa, na primeira dificuldade, põe os “filhos” na rua. Nada há de errado nisso. A empresa tem que sobreviver. O erro é ser ingênuo de achar que não é assim.
Por ironia do destino, logo depois, um acidente com um avião daquela companhia matou dezenas de pessoas. Sobreveio uma crise e a empresa teve que demitir milhares de “colaboradores”. Liguei para minha amiga e perguntei se agora ela entendia por que eu dissera que aquela conversa de “uma grande família” era uma hipocrisia. Costumo provocar meus amigos de RH dizendo que se os senhores feudais tivessem contratado um guru, se passassem a chamar os escravos de “colaboradores” e dado uma cesta básica mensal a eles, talvez a escravidão tivesse durado mais meio século.
No fundo, esses eufemismos só servem para descaracterizar a verdadeira relação de trabalho. Escravo é escravo, empregado é empregado, funcionário é funcionário. Funcionário (público, é claro) tem estabilidade no emprego, não tem patrão (embora tenha chefia), recebe aposentadoria integral ao fim do seu tempo e não corre o risco de uma demissão (a não ser que ele cometa ilícitos). Empregado não tem nada disso, logo não é a mesma relação de trabalho. O próprio Ministério do Trabalho nunca mudou a classificação dos assalariados. O CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) não virou CACACOD (Cadastro de Colaboradores Admitidos e Colaboradores Demitidos).
Mas por que não chamar os empregados de “funcionários” ou “colaboradores”? Por três razões: primeiro, porque não é pejorativo ser empregado; segundo, para ficar claro que o empregado não é um filho, o patrão não é um pai, a empresa não é uma família; terceiro, para não iludir os empregados e lembrá-los de que eles devem estudar e cuidar da sua carreira, pois eles não são “funcionários”, logo, nem a empresa nem o governo vão cuidar deles.
Dois filmes me lembram esse assunto. O primeiro é “A Vida é Bela”, que conta a história de Guido, um homem mandado para um campo de concentração nazista, que passa o tempo inventando histórias e jogos para iludir o filho e fazê-lo acreditar que estão participando de uma grande brincadeira. Seu objetivo é proteger o menino do terror e da violência que os cercavam. Quando as organizações inventam eufemismos para disfarçar a realidade, elas próprias contribuem para criar ilusões e levar os empregados demitidos à revolta e ao desespero, achando que os patrões são cruéis e desumanos. A vida das organizações e cheia de riscos e crises, e elas não podem dar aos empregados a segurança e as vantagens de um funcionário público.
O outro filme é “Amor sem Escalas”. Ele conta a história de um consultor que roda o país ajudando as empresas a fazerem demissões. No filme, os “colaboradores” demitidos entram em pânico e têm as mais diversas reações; tudo muito típico de quem achou que era membro de uma família que, na crise, iria dividir o bife. Resumo da história: trate de amar sua profissão, ser competente, cuidar da sua educação permanente, construir suas reservas e, se um dia for demitido, saia de cabeça erguida e vá cuidar da sua vida... sem ilusões e sem acreditar em milongas corporativas.
José Pio Martins-UP
Que texto, hein? Temos que ser realistas e não hipócritas, senão alimentamos ilusões que não temos a intenção de suprir. Muito bom!
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